terça-feira, 18 de janeiro de 2011

Ezequiel - Parte Oito

O sol se punha lentamente, deixando as sombras invadirem a casa do ferreiro. Ezequiel, ainda inerte na poltrona arfava pesadamente, a armadura pesando sobre seu peito. As chamas da lareira aqueciam o rapaz e dançavam sobre as pequenas toras de lenha habilmente cortadas e arrumadas. O fogo lançando luzes e sombras no rosto de Ezequiel e pelo resto do cômodo vazio. Tudo estava calmo e continuaria assim por horas se não fosse a estranha fumaça que invadia o cômodo lentamente por debaixo da porta. Era como uma neblina negra fosse tomando o chão do casebre lentamente, como se reconhecesse o cenário para garantir que Ezequiel estava sozinho. Quando sua travessia para dentro da sala havia se completado, a fumaça começou a se reunir num canto. A coluna começou a rodar velozmente assim que alcançou a altura de um homem e tão misteriosamente como veio, a fumaça se dissipou. Onde antes se erguia a neblina negra agora jazia um homem de mais ou menos quarenta anos, mas de porte físico de dar inveja. Os ombros largos, a postura perfeita e a compleição atlética se uniam para formar o invasor misterioso. Seus longos cabelos negros desciam por suas costas largas e pareciam brilhar mais ainda com a fraca iluminação.
Seus olhos, do mesmo tom dos cabelos, vasculharam o cômodo rapidamente, confirmando que Ezequiel e o estranho eram de fatos os únicos na casa. Os mesmos olhos se depararam no rapaz ainda inconsciente mais a frente. Ele se aproximou lentamente. Seus pés pareciam nem fazer barulho quando se movia. Ele agachou ao lado da poltrona, observando o rapaz, como se estudasse seu rosto a procura de alguma pista. Aquele era Ezequiel, sem duvida, mas o que o intrigava era porque ele havia sobrevivido? Ele não podia controlar Ziz, não por muito tempo, mas podia focá-la. Era o maior feiticeiro que já existiu e tinha certeza que não tinha errado no encantamento da fera. Então porque ele ainda respirava? Sabia que não podia tocá-lo diretamente, isso lhe era claro, mas Ziz podia. A fera era implacável quando irritada e ele sabia que a irritara profundamente para isso. Algo estava errado. As chamas da lareira dançando atrás dele lançaram uma leve iluminação sobre o peito de Ezequiel, fazendo algo refletir por debaixo do sobretudo chamuscado e imundo. O visitante afastou uma das abas com um martelo curiosamente caído no chão e teve um vislumbre da armadura. As imagens o invadiram como um turbilhão. Subitamente tudo fez sentido para ele. O porquê de Ezequiel ter sobrevivido, o porquê de Ziz não ter o encontrado e mais importante, o quanto Ezequiel era crucial para o fim daquela jornada. O rapaz seria uma peça fundamental para a conquista dos seus objetivos e o feiticeiro não podia deixá-lo escapar. Mas havia algo errado. Havia um cheiro no rapaz, ainda que fraco, que incomodava o feiticeiro. Fechou os olhos e aspirou fundo tentando captar alguma lembrança no odor exalado. Ele conhecia aquele cheiro. De eras atrás. De um tempo em que ainda era um sacerdote. Do tempo em que cria no santo salvador do povo. Do tempo em quer era um rapaz bobo e ingênuo. Num lampejo de memória recordou de onde conhecia aquele odor. Era magia, disso tinha certeza. Mas não era qualquer magia. Era algo mais poderoso. Se para ele, o feiticeiro mais poderoso já existente, era difícil controlar as três grandes feras, o ser a quem pertencia aquele cheiro ia mais longe. Ele podia copiá-las. Era impossível para ele usar ou sequer focar as feras, mas ele podia conjurar encantamentos que copiavam as mesmas. Cópias essas que obedeciam a qualquer comando seu. Podia usá-las para destruir a terra toda ou simplesmente caçar ratos. Era um ser de magia negra. Um enviado do inferno que só aparecia em horas inoportunas e sua chegada era um mau agouro. A hora da besta se aproximava e mais rápido do que o velho feiticeiro pensava. Aquilo significava que seu plano já deveria estar bem mais adiantado do que agora. O mercador (como era conhecido o velho dono do cheiro que impregnava Ezequiel e causava repulsa no feiticeiro) estava obviamente a par da situação e dos anúncios do grande embate. As três grandes feras, Ziz, Behemot e Leviatã deveriam se enfrentar no fim dos tempos. Um combate que levaria ao fim de tudo e todos. Pelo menos era o que dizia a primeira lenda. A segunda ia mais longe. Dizia que ninguém poderia impedir tal embate, exceto um ser místico. Uma espécie de salvador da terra. O ser, dizia a lenda, teria poder suficiente para derrotar as três bestas e a Sombra Eterna. As pedras onde a lenda foi escrita descreviam a criatura como um anjo divino, com seis asas, uma armadura vermelha reluzente abençoada pelo próprio Pai e uma espada de um brilho inimaginável. Dizia-se ter sido feita de um mineral inexistente em todo o universo e que Deus a fizera única e exclusivamente para esta batalha. O único porém era que o tal salvador deveria avaliar o planeta antes de salvá-lo. Só interferiria em sua destruição se achasse que valesse a pena. Se ele condenasse o mundo, as feras digladiariam entre si e a humanidade estaria condenada para todo o sempre. Esse foi um dos motivos de ter abandonado a vida sacerdotal. Lucio não podia crer que o destino de todo uma espécie estivesse confinado às mãos de um ser que ele não sabia se teria qualquer consciência, egoísmo, altruísmo ou mesmo descaso.
O rapaz gemeu, como se acordasse aos poucos, Lucio se assustou, mas bem a tempo de se tornar invisível. Ezequiel abriu os olhos aos poucos, acostumando-se com a claridade fraca da lareira. Sua cabeça rodava e seu estômago doía. O cansaço o tomava mesmo depois do desmaio. Levantou-se cambaleante quase tropeçando em Lucio, embora não pudesse vê-lo, o feiticeiro, por sua vez, deslizou para o lado no momento exato, impedindo o choque entre os dois. Estava invisível, mas não intangível. Ela foi tropeçando e apoiando-se nos móveis e nas paredes até conseguir se sentar numa velha cadeira de madeira. Na mesa à sua frente havia uma cesta com poucas frutas e um meio pão. Ezequiel começou a enfiá-los na boca mais rápido do que conseguia mastigar. A fome era enorme. Encostado no canto, ao lado da lareira, uma idéia ocorreu a Lucio. Moveu os dedos no ar e um pequeno papel apareceu em suas mãos. Pensou um pouco no que deveria pôr no bilhete. Agitou a mão novamente e as palavras foram aparecendo conforme ele pensava, depois, com outro gesto apontou os dedos para Ezequiel. O rapaz ficou paralisado, como se o tempo tivesse parado em todo o cômodo. Nem as chamas da lareira se mexiam. Estáticas como todo o resto. As moscas sobre as frutas, a poeira no chão e tudo o mais parado. Lucio caminhou até Ezequiel, levantou uma das abas do sobretudo surrado e pôs o bilhete no bolso interno, tomando cuidado para não encostar na armadura. Feito isso, olhou ainda mais uma vez para Ezequiel. As lembranças tristes começaram a brotar em seus pensamentos, mas ele afastou num rápido aceno de cabeça. Desapareceu numa na coluna de fumaça negra que voltou a rastejar para debaixo da porta. Assim que terminou de sair, as coisas voltaram ao normal. O fogo crepitava novamente, as moscas voltaram a fazer círculos sobre as frutas e Ezequiel voltou a mastigar. Quando terminou de comer o pão apanhou uma maçã, agora se sentindo bem melhor, levantou-se e pôs-se a analisar o cômodo onde se encontrava. Sabia que era a casa do ferreiro e que só ele poderia ajudá-lo. Lembrou-se de como chegara ali, da porta abrindo e de tudo o mais ficando escuro. Sentiu a armadura pesando de novo e só então lhe ocorreu em tirá-la. Começou a tirar o sobretudo mas antes que terminasse viu o papel dobrado, com metade da folha para fora do bolso mal costurado. Puxou o papel e abriu o bilhete. À luz do fogo leu as únicas duas palavras que havia na folha. “Encontre Dalet!” era só isso que o bilhete dizia, mas não foi o que o assustou. “Essa letra”, ele pensou alto “é da minha mãe.”

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